Este livro fascinante e robusto, escrito pela pena sagaz do <biógrafo mais papador-de-Jabutis do Brasil>, tem me acompanhado em 2023: ARRANCADOS DA TERRA, de Lira Neto (Companhia das Letras, 2021), é uma daquelas obras essenciais pra gente repensar todo o processo colonizador do Brasil inserido nos meandros complexos da história planetária.
Originalmente concebido como biografia de <Maurício de Nassau> – governante dos domínios holandeses no Brasil durante 7 dos 24 anos que durou a empreitada da “Nova Holanda Pernambucana”, capitaneada pela WIC (West Indies Company) – o livro oferece-nos uma leitura saborosa e chocante em doses igualmente cavalares.
Pintor: Victor Meirelles. A Batalha de Guararapes (PE). Exposto em museu no Rio de Janeiro.
A crocância das crônicas historiográficas que o autor cearense nos oferece está calcada num vasto conhecimento e numa minuciosa pesquisa sobre as guerras entre neerlandeses e portugas pelo domínio do Nordeste – sobretudo de Pernambuco, mais rica capitania do Brasil colonial do período açúcareiro, com mais de uma centena de engenhos.
O “choque” que estas páginas causam no leitor tem muito a ver com os detalhes tétricos envolvendo os procederes do “Santo” Ofício (que de santo não tinha nada….). Mesmo aqueles que, como eu, já tem de longa data uma arraigada repulsa pela Inquisição e pela carnificina que esta promoveu ao impor o fundamentalismo católico-cristão, há de ficar abismado com o que Lira Neto nos relata aqui.
Como agente econômico, o tribunal do Santo Ofício agia como confiscador de bens alheios, como um ladrão santificado: “o confisco de bens e o pagamento das custas processuais pelo réu – algumas das principais fontes de renda da Inquisição – eram um dispositivo legal largamente aplicado”, conta-nos Lira (pg. 50). Muitos dos que eram condenados como hereges apóstatas que atentam contra Santa Fé da Católica eram executados publicamente em rituais de profundo sadismo:
“Fevereiro de 1597: ‘Façamos as barbas aos hereges’, gritava o povaréu, ao chamuscar com archotes e tições acesos o rosto dos condenados, já atados aos respectivos pelourinhos. Um costume que antecedia o ápice da cerimônia no qual se ateava fogo à lenha empilhada ao pé dos infelizes. Em seguida ao funesto alarido, ao longo da noite, o crepitar das labaredas, a fumaça espessa e o odor de carne queimada tomavam conta das ruelas tortuosas de Lisboa.” (pg. 51)
Em trechos assim, Lira Neto atinge alturas literárias análogas aquelas que Victor Hugo escalou. E não se acovarda diante da tarefa historiográfica: contar o que fato foi a Cristandade no mundo, não o que esta sonha ou fantasia ser, mas o que de fato se passou na história humana por efeito do cristianismo. O que isto tudo tem a ver com as chamadas “invasões holandesas” do Brasil? Bem, o novelo é enrolado, mas tentemos desenrolá-lo…
Movidos por brutal antisemitismo, os inquisidores de Castela & Portugal aniquilavam quaisquer chances de vida digna – ou mesmo de sobrevivência – aos judeus da Península Ibérica na época em foco (século 17), o que suscitou vagas migratórias significativas de judeus para a região de Recife e Olinda.
Quando o projeto colonizador holandês fracassa – tendo a Batalha de Guararapes (representada em filme épico de Paulo Thiago) como a mais significativa na resolução da refrega -, os judeus sefarditas que estavam em Pernambuco, e que originalmente tinham fugido da Inquisição ibérica em direção a Amsterdam e outras cidades da “tolerante” Holanda, foram obrigados a uma nova diáspora. Explicarei em breve porque tasquei umas aspas na “tolerância” holandesa – é que figuras como Uriel da Costa e Spinoza viveram na pele intolerâncias em território neerlandês pela expressão de suas ideias e foram fulminados com condenações e excomunhões. Relativamente mais tolerante e libertária que Portugal e Castela, a Holanda também tinha suas próprias questões nefastas finculadas ao poder político do fundamentalismo religioso. Parece que onde quer que o dogmatismo fanático impere, a tolerância à diversidade declina e padece.
Lá pelo fim do livro, Lira nos conta que, encerrada a dominação neerlandesa do Nordeste brasileiro, muitos judeus retornaram aos Países Baixos, mas alguns deles se extraviaram pelos mares, indo parar, por exemplo, no Caribe… Um desses barcos cheios de hebreus escapando da Inquisição e da Coroa Portuguesa no Brasil foi parar no atual território dos EUA, naquilo que hoje conhecemos como Ilha de Manhattan, numa pequena cidade então conhecida como Nova Amsterdam. É fascinante como o autor entrelaça os fios da geopolítica para nos contar como é que a Guerra Civil Inglesa se entremescla nesta mixórdia e como a Nova Amsterdam depois se torna Nova York.
Escrito com grande perspicácia, o livro é dedicado “para todos os desterrados, retirantes, refugiados, apátridas, proscritos, exilados, imigrantes, degredados, foragidos, expatriados, fugitivos e desenraizados do mundo.” Senti-me mergulhando nas águas agitadas de uma história complexa durante os meses que passei lendo e relendo este livraço enquanto me preparo para a aventura de passar 6 meses em Amsterdam como doutorando. Como brasileiro, fascina-me este período da colonização holandesa do Brasil, ainda que eu concorde com a zueira que Eduardo Bueno dispara em seu vídeo contra a mentalidade colonizada daqueles que querem escolher a posteriori seu colonizador predileto (https://www.youtube.com/watch?v=5RrWe9rwSw8).
De todo modo, tenho matutado que, no campo da ficção especulativa, daria um interessante exercício de contra-factualismo se imaginássemos que Brasil teríamos sido caso os holandeses tivessem vencido a guerra pelo controle do Nordeste e ali instituído uma Nova Holanda dos trópicos – que incluiria provalmente uma exuberante “Jerusalém” latino-americana criada a partir da diáspora dos hebreus. Longe de mim ser o propositor de uma “história alternativa” vendida como fato, o que estou propondo é uma obra de ficção que explorasse, como K. Dick fez em Homem do Castelo Alto ao imaginar outro desfecho para a 2ª Guerra Mundial, o que decorreria de uma vitória holandesa que tivesse dado ensejo para a fundação de um país neerlandês-brazuca em território nordestino.
O livro também traz detalhes interessantes sobre figuras históricas como Uriel da Costa e Baruch Spinoza, hereges excomungados do seio do judaísmo e que tinham ideias com as quais sinto enorme afinidade. O antisemitismo de uns tinha um análogo no dogmatismo inflexível de outros – e segue a tragicomédia sangrenta dos monoteísmos, cada um achando ser dono da verdade e cada um se enganando redondamente. Eu lia aquilo e pensava com meus botões: nasci no fim do século 20, ufa! Se tivesse nascido na época de Spinoza e Uriel, eu também teria sido excomungado, queimado vivo numa fogueira, fulminado por uma fatwa ou enfiado num espeto por aqueles que dizem amar o Deus supremo, mas não conseguem tolerar o livre pensamento e sua audaz expressão.
Em prefácio à edição portuguesa de Arrancados da Terra, o autor destaca que um dos elementos mais relevantes mobilizados pelo texto é uma crítica de todos os processos sociais de repulsa da alteridade, recusa da diferença (e do direito à esta), algo crucial num tempo como o nosso, onde obscurantismos, negacionismos e fascismos ainda se utilizam do nome de um deus-ferramenta para “a construção ideológica de inimigos supostamente ameaçadores, sempre por meio da demonização do Outro“ (Fonte: <Deus me Livro>.
Volto ao tema qualquer dia se eu tiver pique.
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SAIBA MAIS:
SINOPSE OFICIAL:
A grande travessia dos pioneiros que formaram a primeira comunidade judaica das Américas, no Recife, e ajudaram a construir Nova York, contada por um dos maiores biógrafos da atualidade.
Em setembro de 1654, um grupo de 23 refugiados desembarcou em Nova Amsterdam, colônia holandesa na costa oriental da América do Norte. Eram homens e mulheres, adultos e crianças, possivelmente sobreviventes de uma odisseia iniciada meses antes nas praias de Pernambuco. Exaustos, esfarrapados e sem dinheiro, fugiam da Inquisição, reavivada nas capitanias do Nordeste depois da vitória luso-brasileira na guerra contra a ocupação holandesa.
Os primeiros judeus da ilha de Manhattan, assim como seus parentes e antepassados sefarditas ibéricos, enfrentaram uma sucessão dramática de dificuldades e privações até encontrar a terra prometida no Novo Mundo. Seguindo a trilha de religiosos e intelectuais ilustres, mas também de lavradores e mascates quase anônimos, Lira Neto conta sua incrível saga de fé, resistência e esplendor cultural, e faz assim também uma história narrativa e colorida da ocupação holandesa do Nordeste. Com prosa fluida e rigor histórico, o autor da trilogia Getúlio entrelaça as biografias desses judeus pioneiros à crônica de grandes acontecimentos que ajudaram a moldar o Brasil e a América.
“Uma narrativa fluente e erudita que resgata da ignorância de quase todos e do esquecimento de uns poucos a saga seiscentista do grupo de judeus de origem portuguesa que singrou de Amsterdam ao Recife e de lá à futura Nova York, abraçando os dois Atlânticos.” – Evaldo Cabral de Melo
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Publicado em: 11/08/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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